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Não pense que é fácil, hoje em dia, encontrar um bar e guardá-lo como se conserva uma insígnia. Isto porque não o escolhemos. Ele nos escolhe. Passa, a partir daí, a ser o espaço onde é possível, desde erguer brindes imaginários até pensar, ou resolver os grandes problemas da humanidade. Foi assim, aconteceu comigo e a Casa de Choro mais conhecida deste lado nortista do país. Estive por lá com assiduidade de ganhar medalha, por mais de vinte anos da minha vida, aos fins de semana. Conheci antigos quanto talentosos músicos - jovens também, estavam começando - em meio às melhores rodas de choro e samba nas quais o aprendiz aqui, foi sempre recebido como se fora craque tarimbado. Deixei a um tempo, a repetição amiudada de antes, por questões que só a passagem dos anos explica, mas guardo lembranças de tardes, noites, madrugadas, recheadas de velhos - como também de novos - camaradas que costumam se entrincheirar por lá.
Pessoas simples, outras sofisticadas, artistas, intelectuais, poetas, enfim... Espécie de cornucópia cultural onde ouvi histórias lindas, às vezes trágicas, como a de "Miloca", de quem escolho esconder o nome atrás de um apelido qualquer, para preservar sua memória, já que não está mais aqui para ler meu texto. Também recordo um outro e este, ainda conosco, vive preso a uma cama. Com idade para ser meu pai, lembro da primeira vez que estive em sua companhia. Encontro casual, em uma tarde qualquer de um domingo. Dirigia pelas ruas do bairro o encontrei perambulando, violão debaixo do braço. Parecia caminhar a esmo, ou a procura de um bar onde pudesse, como nos tempos da Rádio Marajoara, abrir o vozeirão comprometido em um acidente que lesionou um maxilar, prejudicando a natural articulação. Carona aceita, apenas disse: vamos ali e apontou um caminho. Dirigi até o primeiro bar, passamos para o segundo, por um terceiro e sei lá mais em quantos estivemos juntos, lembrando antigas canções de um tempo conhecido hoje, simplificadamente, como a era do rádio. Arranhando o violão ele levava no gogó. Eu, batendo com os dedos na mesa.
Gereco*, "seu" Geraldo, admirava outro cantor, Antônio Moreira da Silva, o Morengueira, criador do samba-de-breque, de sucessos desde 'Arrasta a Sandália', de Aurélio Gomes e Baiaco (malandro histórico e compositor da Deixa Falar, a primeira escola de samba) em 1932, até o samba de Miguel Gustavo (um tanto esquecido, hoje) 'O Rei do Gatilho', cuja letra da década dos anos 60, diz de um caubói o qual, como o Zorro americano, tinha um índio por companheiro fiel. Era o Kid Morengueira, apelido que o acompanhou pelo resto da vida.
Não lembrei de Gereco, enquanto escrevo, pelas criações do último malandro e sim por uma canção do gaucho, gremista, Lupicínio Rodrigues, que deixou um legado com centena e meia de músicas editadas, parceiro de Felisberto Martins no samba que tantas vezes ouvi "seu" Geraldo cantar com voz forte e empolgada. Revisitei o bar, de novo, um domingo desses. Fui talvez para revê-lo sem que pudesse oferecer outra carona. Hoje quieto, quase imóvel, não fala. Desconheceu minha presença. Olhar perdido, não me enxergou. Parecia esperar algo. Quem sabe aguarda que se desligue a derradeira conexão com as coisas que ficarão por aqui, quando se for. Então lembrei da canção e cantei perto de seu ouvido: "cigano abandonei o meu bando"... Percebi, talvez, uma réstia de luz em seus olhos. Escutei, longe, um sopro que pareceu vir lá do fundo, no fraco balbuciar: "só para viver cantando"... Resposta ao desafio? Ou o antigo dó de peito, como se dizia, ressurgira? Engano... Só o que restou dele, hoje.
Nota final necessária - * Gereco ou "seu" Geraldo Rodrigues é pai do Gilson, músico e dono do reduto de chorinho mais famoso de Belém.
* Jaime Bibas é arquiteto desde 1969. Passeia por entre as artes visuais, música e literatura, enquanto observa as paisagens urbanas acumuladas ao longo do tempo, como um dos cronistas no belemdopará. |
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