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Todos falam, poucos veem


Políticos e acadêmicos discursam sobre os valores republicanos. E o povo? - Vivi Fernandes de Lima


“Liberdade! Liberdade! Abre as asas sobre nós!” Os versos de Medeiros e Albuquerque para o Hino da Proclamação da República anunciavam o tom do regime inaugurado em 1889, tão libertário que – isso o autor não devia imaginar – seu refrão chegou a inspirar um samba-enredo da escola de samba carioca Imperatriz Leopoldinense 100 anos mais tarde. Mas o novo regime nem sempre foi visto com olhos tão otimistas. Em 1985, o compositor Juca Chaves ironizava o tenso momento político brasileiro com a canção “Nova República”: “o que preocupa o povo isso eu sei/ não é somente a ausência do simpático Tancredo/ é o excesso de saúde do Sarney”. Coincidências com o noticiário de 2009 à parte, e hoje? Como a República é entendida?

O Ministério da Justiça tem se ocupado do II Pacto Republicano, um conjunto de medidas baseadas, entre outras questões, na proteção dos direitos humanos e no acesso universal à Justiça. Recentemente, o sociólogo Demétrio Magnoli publicou no jornal O Globo um artigo em que mencionava a “política republicana de combate à pobreza”. Já o novo reitor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Ricardo Vieiralvez, disse em seu discurso de posse que era um “dever republicano” produzir o máximo de oportunidades para os cidadãos. Exemplos como esses demonstram como o tema está nos noticiários, na boca do governo, da crítica e da academia.

A RHBN foi ao Museu da República, no Rio de Janeiro, para saber o que seus frequentadores – pessoas que não estão na política partidária, nem na academia – pensam sobre isso. Também conhecido como Palácio do Catete, o Museu recebe em média 3.500 visitantes por mês. O imóvel foi adquirido pelo governo federal em 1896 para ser a sede da Presidência da República. Dezoito presidentes se instalaram no local até a transferência da capital federal para Brasília, em 1960, mas a fama do edifício aumentou com a morte do presidente Getulio Vargas, em 1954. Seu quarto, local do suicídio, é mantido com o mesmo mobiliário e alguns pertences pessoais do estadista.

A doméstica aposentada Alice Gomes Alves, 65 anos, relaciona o regime com o ex-presidente: “Na época da República havia coisas boas. Depois que ele morreu, acabou, mudou tudo. Mas, pelo menos, eu posso vir ao jardim dele todos os dias para me distrair”, diz Alice, com saudade de Getulio Vargas. E é aí que mora um dos equívocos provocados pelo tema: a imagem de um estadista associada à República. Sobre esse depoimento, o historiador e filósofo Newton Bignotto, professor da Universidade Federal de Minas Gerias (UFMG), é enfático: “Não há experiência republicana sem liberdade. Por isso o autoritarismo não pode ser republicano”, esclarece [Leia mais sobre o tema no Dossiê República, publicado na RHBN nº 5].

A professora Raquel Braga Lourenço, 40 anos, é mais pessimista: “Hoje deveríamos escrever república de outra forma: ré-pública. Porque tudo que é público no Brasil anda para trás”, diz ela. Indicando a sala de refeições do palácio, ela denuncia: “Os conjuntos de louça da mesa são diferentes uns dos outros. Deve ser porque cada presidente que passava por aqui levava uma peça de lembrança. Não podiam fazer isso! As louças não eram deles, eram do palácio, e o palácio é público”. Com isso, outra visitante, a assistente social Fernanda Fernandes, 40 anos, concorda e justifica: “A questão é cultural. No Brasil, ainda estamos a anos-luz da república, pregados no privado”.

Em geral, há uma dificuldade de se entender o que é “república”, principalmente esta com “r” minúsculo. “Para o grande público, o significado é uma grande confusão”, afirma Bignotto. Isso porque a definição antiga de res publica – coisa pública – ainda está distante da memória e da prática dos brasileiros. “A democracia republicana deve estar atenta a valores como participação popular, atitudes cívicas e interesses públicos. É preciso ir além do interesse privado. Buscar algo em comum é um grande passo para alcançar valores republicanos”, diz Bignotto.

O uso, pelo historiador, da expressão “democracia republicana” em vez de “república democrática” não foi por acaso. “Esta é a maneira correta de conceituar a república no nosso tempo. Este termo parte da teoria da democracia. No Renascimento, república já foi o contrário de tirania, e no século XVIII, de monarquia. Hoje é o oposto de totalitarismo. Não há motivo para opor república e democracia”, ensina.

Mas Bignotto reconhece: conceituar república não é fácil. Os exemplos de atitudes republicanas vão desde ações do governo, como o orçamento participativo – pelo qual o cidadão pode acompanhar os gastos do dinheiro público –, a iniciativas simples do dia a dia, como não jogar papel na calçada. Talvez por isso também seja difícil encontrar uma figura que a represente. No imaginário popular, ainda está presente a escultura do marechal Deodoro da Fonseca.

Montado em seu cavalo, com pose de líder, a estátua do militar assiste ao tumultuado dia a dia do Centro do Rio de Janeiro. O monumento representa o fato histórico, mas não remete claramente aos valores republicanos. O contador Márcio Alberto Scremin, 47 anos, é um dos que têm essa memória: “É dele que me lembro quando escuto a palavra república. Aliás, também lembro de governo e de liberdade, por causa do hino”.


Saídas para a desigualdade

Movimentos sociais crescem e tentam dar voz a cidadãos excluídos das políticas públicas

O quinto artigo da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 – a sexta do regime republicano – é claro: garante aos brasileiros e estrangeiros residentes no país o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Mas os noticiários comprovam que esses direitos não têm sido garantidos na prática. Até a entrada desta edição da RHBN na gráfica, os principais jornais anunciavam uma guerra entre facções do tráfico de drogas e a Polícia Militar no Morro dos Macacos, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Os conflitos resultaram em mortes de inocentes, moradores do local, e até na queda de um helicóptero da PM. E lá se foram os direitos de um artigo inteiro da Carta Magna da república...

Não por acaso, as favelas são locais onde há diversos projetos desenvolvidos por organizações sem fins lucrativos. O Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), criado pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho (1935-1997), é uma delas. Para o diretor geral da entidade, Cândido Grybowski, a função dos movimentos sociais é levar para a arena política o que tende a ser ignorado. “Há uma distância entre o que está escrito e o que existe na prática. As favelas são ‘não cidades’, áreas privadas fora do espaço público. A cidade não é suficientemente republicana para ser de todos”, diz Grybowski, também membro do Comitê Internacional do Fórum Social Mundial.

Se, por um lado, não se consegue garantir a segurança dessas comunidades, por outro, quem está na cidade também não compartilha dos valores republicanos quando fecha uma rua pública para sua segurança. “Esse é um exemplo de privatização do espaço público. A lógica do privado é essa: quem tem mais dinheiro resolve o seu problema. Mas se não há igualdade ou liberdade, também não há segurança, um direito civil tão importante quanto os outros. Ainda estamos longe de garantir esse direito”, diz Grybowski. No jardim do Museu República, o policial militar Anderson da Cunha, 37 anos, dá um depoimento nada otimista: “Eu acho que quem fecha a rua está certo. As pessoas precisam proteger suas famílias porque este tipo de segurança é necessário”, diz Cunha.

Do outro lado da calçada do Palácio do Catete, há exemplos claros da falta de interesse público: camelôs expõem suas mercadorias sem autorização da prefeitura. Durval Ferreira Domingues, 73 anos, vende frutas há 30. “Estou correndo atrás da licença, mas não consigo”, justifica-se o trabalhador, que marca ponto na calçada de domingo a domingo: fica de serviço 30 dias seguidos e folga dez. Mamões, mangas e maçãs são dispostas num triciclo para facilitar sua fuga dos fiscais da prefeitura, que volta e meia apreendem sua mercadoria. “Na semana passada, tive um prejuízo de R$ 300,00 por causa disso. Minhas frutas não atrapalham a vida de ninguém”, garante o vendedor, apontando a calçada de quase dez metros de largura. Mesmo sem conseguir a licença, ele insiste no ponto ilegal.

Casos como o de Durval Domingues são facilmente explicados pelo diretor geral do Ibase, Cândido Grybowski: “Ninguém nasce republicano. É preciso educar as pessoas para isso. Nesse sentido, o Movimento dos Sem Terra (MST) é a maior escola de cidadania dos últimos anos”.

O Ibase não está sozinho nessa caminhada para fazer valer a Constituição. AffroReagge, Viva Rio, Grupo Olodum e a Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase) são outros exemplos das milhares de ONGs do país. A quantidade de entidades como essas vem crescendo no Brasil. De acordo com o IBGE, em 2002 o país tinha mais de 275 mil organizações sem fins lucrativos. Em 2005, esse número subiu para 388 mil. O crescimento chamou a atenção dos parlamentares, que abriram em 2007 a CPI das ONGs, que investiga a liberação de recursos do governo federal para ONGs e organizações da sociedade civil de interesse público (Oscips), e a utilização dessa verba por essas entidades no período de 1999 a 2009.


Saiba Mais - Bibliografia
BIGNOTTO, Newton. Origens do republicanismo moderno. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001.

CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados. O Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/todos-falam-poucos-veem

Comentários

  1. acadêmicos discursam sobre os valores republicanos??? De onde essa idiota tirou isso?

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  2. não duvido que esse anôôôônimo comprou o seu diploma caso tenha conseguido um por esse aí é burro.

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